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FRAUDE À EXECUÇÃO: REFLEXOS DO NOVO CPC NA DEFESA DO AQUIRENTE DE BOA-FÉ. AVANÇOS E RETROCESSOS

O Código de Processo Civil de 1973 (CPC/73), cuja vigência se deu até o dia 17 de março do corrente ano de 2016, tratava como fraudulentas as alienações de bens, nas seguintes hipóteses: I - quando sobre eles pender ação fundada em direito real; II - quando, ao tempo da alienação ou oneração, corria contra o devedor demanda capaz de reduzi-lo à insolvência; III - nos demais casos expressos em lei.

Levada ao seu extremo, essa regra impunha ao comprador o pesado ônus de obter certidões dos distribuidores de todas as comarcas do país. Por sua interpretação literal, a venda de um imóvel realizada em São Paulo, cujo vendedor residisse no Rio de Janeiro, poderia vir a ser futuramente anulada caso contra ele corresse uma ação no Amazonas.

Diante da insegurança jurídica gerada, e da publicidade inerente aos registros públicos, a jurisprudência evoluiu, culminando, em 2009, com a edição da Súmula nº 375, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), através da qual se definiu que “O reconhecimento da fraude à execução depende do registro da penhora do bem alienado ou da prova de má-fé do terceiro adquirente”. Vale dizer, havendo a anotação do ônus no registro competente, presume-se a má-fé. Na sua ausência, presume-se a boa-fé, cabendo ao credor demonstrar que o terceiro adquirente tinha ciência da existência da demanda judicial, invertendo-se o ônus da prova.

Essa orientação foi reforçada no final de 2014, pelo próprio STJ, quando do julgamento do Recurso Especial (RESP) nº 956.943/PR, em sede recurso repetitivo, isto é, com força de precedente vinculante da jurisprudência deste tribunal, conforme normas processuais vigentes à época.

Já em janeiro de 2015 esse entendimento foi consolidado em lei, tendo sido reconhecido no art. 54, da Lei nº 13.097/2015, a eficácia em relação a terceiros dos negócios jurídicos que tenham por finalidade a constituição, transferência ou modificação de direitos reais sobre imóveis, caso, previamente à celebração desses negócios, não tenha sido feito: I - o registro de citação de ações reais ou pessoais reipersecutórias; II – a averbação da constrição judicial ou do ajuizamento de ação de execução ou expediente de cumprimento de sentença; III – a averbação de restrição administrativa ou convencional ao gozo de direitos registrados, de indisponibilidade ou de outros ônus, quando previstos em lei; e IV – a averbação, mediante decisão judicial, da existência de outro tipo de ação cujos resultados ou responsabilidade patrimonial possam reduzir seu proprietário à insolvência.

E para que não reste dúvidas quanto à necessidade prévia da prática desses atos para que o credor possa opor seus direitos contra terceiros adquirentes, o parágrafo único desse mesmo dispositivo estatuiu que, ressalvadas as hipóteses de fraude comprovadas em processo falimentar e as que independam de registro de título de imóvel, “Não poderão ser opostas situações jurídicas não constantes da matrícula no Registro de Imóveis, inclusive para fins de evicção, ao terceiro de boa-fé que adquirir ou receber em garantia direitos reais sobre o imóvel”.

Ocorre que o Novo Código de Processo Civil de 2015 (NCPC), ao tratar especificamente sobre fraude à execução, trouxe inovações que voltaram a ampliar a responsabilidade do comprador na adoção de cautelas para aquisição de bens.

Seu art. 792 trouxe cinco hipóteses nas quais a alienação ou oneração é considerada fraudulenta: I - quando sobre o bem pender ação fundada em direito real ou com pretensão reipersecutória, desde que a pendência do processo tenha sido averbada no respectivo registro público, se houver; II - quando tiver sido averbada, no registro do bem, a pendência do processo de execução, na forma do art. 828; III - quando tiver sido averbado, no registro do bem, hipoteca judiciária ou outro ato de constrição judicial originário do processo onde foi arguida a fraude; IV - quando, ao tempo da alienação ou da oneração, tramitava contra o devedor ação capaz de reduzi-lo à insolvência; V - nos demais casos expressos em lei.

Nota-se que as três primeiras hipóteses acima estão em linha com toda a evolução da matéria. A já reconhecida presunção de fraude (má-fé) na alienação ou oneração de bens realizadas após prévia averbação ou registro de ação judicial na matrícula de imóveis manteve-se. O mesmo se aplica aos demais bens sujeitos a registro, como veículos, além dos casos de oneração (garantia, hipoteca, caução ou qualquer outro ato de constrição judicial).

A polêmica surge em relação à quarta hipótese. A partir de agora, a existência de ação tramitando contra o vendedor, capaz de levá-lo à insolvência, por si só voltou a ser, - isto é, independente de inscrição nos registros públicos pertinentes -, motivo suficiente para caracterizar a má-fé do comprador? A Lei nº 13.097/2015 teria sido revogada nesse aspecto pelo NCPC? Será que voltamos ao longínquo ano de 1973 e teremos que reiniciar toda a discussão da matéria?

A propósito, é pertinente a regra complementar inserida no § 2º desse mesmo comentado art. 792, segundo a qual: “No caso de aquisição de bem não sujeito a registro, o terceiro adquirente tem o ônus de provar que adotou as cautelas necessárias para a aquisição, mediante a exibição das certidões pertinentes, obtidas no domicílio do vendedor e no local onde se encontra o bem.

Interpretando essa norma de forma sistemática com o art. 54, da Lei nº 13.097/2015, alguns estudiosos defendem que este último permanece intacto e com plena eficácia, devendo o inciso IV do art. 792, do NCPC, ser aplicado apenas em relação aos bens não sujeitos a registro público.

Em sentido contrário, outros sustentam que essa interpretação imporia aos adquirentes de bens móveis, via de regra de menor expressão econômica, ônus desproporcionalmente superior aos adquirentes de bens sujeitos a registros, como os imóveis. Os primeiros, - embora não mais em todo o país, mas apenas no domicílio do vendedor e no local onde se encontra o bem -, teriam que tirar certidões em diversos órgãos (Justiças estaduais, federais, trabalhistas, Juntas Comerciais), enquanto que os últimos precisariam de uma única certidão no registro público pertinente, o que não se justificaria em face do caráter público reconhecido como regra às distribuições de ações judiciais.

O fato é que a legislação não é clara. Entre avanços e retrocessos, a questão voltou a ser polêmica. Na dúvida, cabe aos operadores do direito alertar e estimular os compradores de bens, sujeitos ou não a registro público, a adotarem uma postura proativa. Diligências mínimas que comprovem a sua boa-fé passam a ser necessárias, tais como a extração de certidões negativas fiscais em nome do vendedor, entre outras. A cautela recomenda que o comprador assuma o ônus de demonstrar da sua condição de boa-fé, a fim de elidir-se de futuros inconvenientes.

Mas não é só isso! Duas advertências adicionais mostram-se imperiosas.

A primeira, acerca do instituto da desconsideração da personalidade jurídica. O § 3º do comentado art. 792 do NCPC disciplinou que nos casos em que esse instituto for aplicado, “a fraude à execução verifica-se a partir da citação da parte cuja personalidade se pretende desconsiderar”. Significa dizer que os efeitos da decisão que declara a desconsideração retroagem até a data da citação da empresa cuja personalidade foi desconsiderada.

Com isso, as relações jurídicas realizadas pelos seus sócios nesse período (e vice-versa, no caso de desconsideração inversa) ficam expostas à alegação de fraude, podendo ser desconstituídas, mesmo sem a participação direta no negócio, no caso de dívidas existentes em nome da empresa (no caso de desconsideração tradicional) ou do sócio (na desconsideração inversa).

A segunda, a respeito de eventuais dívidas tributárias. O Código Tributário Nacional (CTN), com as alterações sofridas pela Lei Complementar (LC) nº 118/2005, passou a dispor, em seu art. 185, que “Presume-se fraudulenta a alienação ou oneração de bens ou rendas, ou seu começo, por sujeito passivo em débito para com a Fazenda Pública, por crédito tributário regularmente inscrito como dívida ativa”.

Trata-se aqui, é bem verdade, de presunção relativa, que admite prova em contrário e que a própria norma, em seu parágrafo único, afasta quando foram reservados pelo devedor bens ou rendas suficientes ao total pagamento da dívida fiscal.

De todo modo, deve-se ter em vista a existência dessa norma específica no âmbito do direito tributário. A simples constatação de débito inscrito em dívida ativa, ainda que não ajuizada qualquer ação judicial para a cobrança do crédito tributário, já é suficiente para fazer presumir a fraude à execução. Essa regra afasta as regras de direito privado acima comentadas, e a diferença de tratamento entre os créditos privados e fiscais já foi admitida pelo STJ em 2010, no RESP nº 1.141.990/PR, julgado sob o rito dos recursos repetitivos.

Nesse sentido, é importante que o comprador averigue eventual participação societária do vendedor e, caso positivo, amplie a obtenção das certidões também em nome da respectiva pessoa jurídica. Da mesma forma, é importante que exija do vendedor e de eventual empresa da qual seja sócio a apresentação do extrato de sua situação cadastral e relação de débitos perante os fiscos federal, estadual e municipal.

Agindo assim, o comprador fica de posse de provas documentais para demonstrar que na época da aquisição agiu de boa-fé e que adotou as cautelas necessárias para a legitimidade do negócio praticado.

 

Fonte: Eberhardt, Carrascoza & Advogados Associados. Advocacia empresarial, atuante nas áreas de direito tributário, penal tributário, societário, cível e trabalhista.


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